O formato tradicional das escolas está ultrapassado?
"Trabalho há mais de
30 anos com escola que não tem aula, série e prova, e dá certo", diz
educador português.
Idealizador da Escola da Ponte, em
Portugal, instituição que, em 1976, iniciou um projeto no qual os estudantes
aprendem sem salas de aula, divisão de turmas ou disciplinas, o educador
português José Pacheco afirma que as escolas tradicionais são um desperdício
para os estudantes e os professores.
"O que fiz por mais de 30 anos foi
uma escola onde não há aula, onde não há série, horário, diretor. E é a melhor
escola nas provas nacionais e nos vestibulares", diz. "Dar aula não
serve para nada. É necessário um outro tipo de trabalho, que requer muito
estudo, muito tempo e muita reflexão."
UOL Educação - Em suas andanças pelo
país, qual o absurdo que mais chamou sua atenção?
Pacheco - O maior absurdo
é que a educação do Brasil não precisa de recursos para melhorar. O Brasil tem
tudo o que precisa, tem todos os recursos e os desperdiça.
UOL Educação - Desperdiça como?
Pacheco - Pelo tipo de
organização. A começar pelo próprio Ministério da Educação. Eu brinco, por
vezes, dizendo que o melhor que se poderia fazer pela educação no Brasil era
extinguir o Ministério da Educação. Era a primeira grande política educativa.
UOL Educação - Qual o problema do
ministério?
Pacheco - Toda a
burocracia do Ministério da Educação que se estende até a base, porque a
burocracia também existe nas escolas, à imagem e semelhança do ministério. No
próprio ministério, o contraste entre a utopia e o absurdo também existe.
Conheço gente da máxima competência, gente honesta. O problema é que, com gente
tão boa, as coisas não funcionam porque o modo burocrático vertical não
funciona. É um desperdício tremendo.
UOL Educação - Como resolver?
Pacheco - Teria de haver
uma diferente concepção de gestão pública, uma diferente concepção de educação
e uma revisão de tudo o que é o trabalho.
UOL Educação - O que teria de mudar na
concepção de educação?
Pacheco - O essencial
seria que o Brasil compreendesse que não precisa ir ao estrangeiro procurar as
suas soluções. Esse é outro absurdo. Quais são hoje os autores que influenciam
as escolas? Vygotsky [Lev S. Vygotsky (1896-1934)], Piaget [Jean Piaget
(1896-1980)]? Não vejo um brasileiro. Mas podem dizer: "E Paulo Freire?".
Não vejo Paulo Freire em nenhuma sala de aula. Fala-se, mas não se faz.
Identifiquei, nos últimos
anos, autores brasileiros da maior importância que o Brasil desconhece. Esse é
outro absurdo. Quem é que ouviu falar de Eurípedes Barsanulfo (1880-1918)? De
Tomás Novelino (1901-2000)? De Agostinho da Silva (1906-1994)? Ninguém fala
deles. Como um país como este, que tem os maiores educadores que eu já conheci,
não quer saber deles nem os conhece?
Há 102 anos, em 1907, o
Brasil teve aquilo que eu considero o projeto educacional mais avançado do
século 20. Se eu perguntar a cem educadores brasileiros, 99 não conhecem. Era
em Sacramento, Minas Gerais, mas agora já não existe. O autor foi Eurípedes
Barsanulfo, que morreu em 1918 com a gripe espanhola. Este foi, para mim, o
projeto mais arrojado do século 20, no mundo.
UOL Educação - O que tinha de tão
arrojado?
Pacheco - Primeiro, na
época, era proibida a educação de moços e moças juntos. Só durante o governo
Getúlio Vargas é que se pôde juntar os dois gêneros nos colégios. Ele
[Barsanulfo] fez isso. Ele tinha pesquisa na natureza, tinha astronomia no
currículo oficial. Não tinha série nem turma nem aula nem prova. E os alunos
desse liceu foram a elite de seu tempo. Tomás Novelino foi um deles e Roberto
Crema, que hoje está aí com a educação holística global, foi aluno de Novelino.
UOL Educação - Qual foi a maior utopia
que o senhor viu?
Pacheco - O Brasil é um
país de utopias, como a de Antônio Conselheiro e a de Zumbi dos Palmares. Fui
para a história, para não falar em educação. Na educação, temos Agostinho da
Silva, que é um utópico coerente, cuja utopia é perfeitamente viável no Brasil.
Ou seja, é possível ter uma educação que seja de todos e para todos. O Brasil,
dentro de uns 30 ou 40 anos, será um país bem importante pela educação. São os
absurdos que têm de desaparecer, para dar lugar à concretização das utopias.
Acredito nisso, por isso estou aqui.
UOL Educação - Os professores são
resistentes às mudanças?
Pacheco - Os professores
são um problema e são a solução. Eu prefiro pensar naqueles professores que são
a solução, conheço muitos que estão afirmando práticas diferentes.
UOL Educação - Práticas diferentes como
a da Escola da Ponte?
Pacheco - Não são
"como", mas inspiradas, com certeza. São práticas que fazem com que a
escola seja para todos e proporcione sucesso para todos.
UOL Educação - Dentro da escola
tradicional, onde ocorre o desperdício de recursos?
Pacheco - Se considerarmos
o dinheiro que o Estado gasta por aluno, daria para ter uma escola de elite.
Onde o dinheiro se desperdiça? Por que em uma escola qualquer, que tem turmas
de 40 alunos, a relação entre o número de professores e de alunos é de um para
nove? Por que os laudos e os atestados médicos são tantos? Porque a situação
que se criou nas escolas é a do descaso. Esse é um absurdo.
UOL Educação - Onde mais ocorre o
desperdício nas escolas?
Pacheco - O desperdício de
tempo também é enorme em uma aula. Pelo tipo de trabalho que se faz, quando se
dá aula, uma parte dos alunos não tem condições de perceber o que está
acontecendo, porque não têm os chamados pré-requisitos, e se desliga. Há um
outro conjunto de crianças que sabem mais do que o professor está explicando -
e também se desliga. Há os que acompanham, mas nem todos entendem o que o
professor fala. Em uma aula de 50 minutos, o professor desperdiça cerca de 20
horas. Se multiplicarmos o número de alunos que não aproveitam a aula pelo tempo,
vai dar isso.
O desperdício maior tem a
ver com o funcionamento das escolas. Os professores são pessoas sábias,
honestas, inteligentes e que podem fazer de outro modo: não dando aula, porque
dar aula não serve para nada. É necessário um outro tipo de trabalho, que
requer muito estudo, muito tempo e muita reflexão.
UOL Educação - As famílias não estão
acostumadas com escolas que não têm classe, professor ou disciplinas. Querem o
conteúdo para o vestibular. Como se rompe com esse tipo de mentalidade?
Pacheco - Pode-se romper
mostrando que é possível. Eu falo do que faço, e não de teorias. O que fiz por
mais de 30 anos foi uma escola onde não há aula, onde não há série, horário,
diretor. E é a melhor escola nas provas nacionais e nos vestibulares. Justamente por não ter aulas e nada
disso.
UOL Educação - Por que uma escola que
não tem provas forma alunos capazes de ter boas notas em provas e concursos?
Pacheco - Exatamente por
ser uma escola, enquanto as que dão aulas não são. As pessoas têm de perceber que
não é impossível. E mais, que é mais fácil. Posso afirmar, porque já fiz as
duas coisas: estive em escolas tradicionais, com aulas, provas, com tudo
igualzinho a qualquer escola; e estive também 32 anos em outra escola que não
tem nada disso. É mais fácil, os resultados são melhores.
UOL Educação - Na concepção do senhor, o
que é uma boa escola?
Pacheco - É a aquela que
dá a todos condições de acesso, e a cada um, condições de sucesso. Sucesso não
é só chegar ao conhecimento, é a felicidade. É uma escola onde não haja nenhuma
criança que não aprenda. E isso é possível, porque eu sei que é. Na prática.
UOL Educação - O professor que está em
uma escola tradicional tem espaço para fazer um trabalho diferente? O senhor vê
espaço para isso?
Pacheco - Não só vejo,
como participo disso. No Brasil, participei de vários projetos onde os
professores conseguiram escapar à lógica da reprodução do sistema que lhe é
imposto. Só que isso requer várias condições: primeiro, não pode ser feito em
termos individuais; segundo, a pessoa tem de respeitar que os outros também têm
razão. Se, dentro da escola, os processos começam a mudar e os resultados
aparecem, os outros professores se aproximam. Não tem de haver divisionismo.
UOL Educação - O senhor acha que a
mudança na estrutura da escola poderia partir do poder público ou depende da
base?
Pacheco - Acredito que
possa partir do poder público, mas duvido que aconteça. As secretarias têm
projetos importantes, mas são de quatro anos. Uma mudança em educação precisa
de dezenas de anos. Precisa de continuidade. E isso é difícil de assegurar em
uma gestão. Precisa partir de cada unidade escolar e do poder público juntos.
Fonte: http://educacao.uol.com.br/ultnot/2009/06/30/ult105u8320.jhtm